Entrevista com a Ana Carla Fonseca Reis sobre o desenvolvimento das cidades através da criatividade. Ana Carla é uma das principais especialistas em economia e cidades criativas do mundo. Economista, mestre em urbanismo e doutora com tese pioneira em Cidades Criativas. É sócia-diretora da Garimpo de Soluções, que atua na convergência de cultura, criatividade e negócios. Atualmente desenvolve projetos sobre cidades criativas e desenvolvimento, tais como a plataforma Criaticidades, o livro Cidades Criativas – Perspectivas e o Seminário Internacional Cultura e Transformação Urbana. Nesta entrevista, Ana Carla fala sobre economia criativa, Copa do Mundo e Olimpíadas, turismo e, é claro, sobre o conteúdo do curso que irá ministra em setembro de 2012 pelo Cemec.
Gustavo Seraphim: De onde surgiu o termo cidades criativas? Ele está atrelado de alguma forma à econonomia criativa?
Ana Carla Fonseca Reis: Cidades criativas e economia criativa surgem em um mesmo contexto de mudanças mundiais. Na economia, percebemos uma padronização de bens e serviços, o deslocamento das fábricas para as franjas das cidades e países periféricos, a fragmentação das cadeias de produção. No final, temos dois tipos de produtos e serviços: os comoditizados (que brigam apenas por preço, da soja à camiseta branca) e os de alto valor agregado (baseados em diferenciações). A economia criativa não apenas atua nessa busca de valor agregado e diferenciação de produtos e serviços criativos (as chamadas “indústrias criativas”, setores mais criativos da economia), como também estimula a diferenciação de produtos e serviços tradicionais. Basta pensar em como a moda favorece a diferenciação de têxteis e estes, para poderem entregar um tecido diferenciado, incentivam por sua vez a diferenciação de algodão (vide o algodão colorido desenvolvido pela Embrapa). Esse efeito em cadeia da criatividade na economia, com agregação de valor e diferenciação, é o que forma a economia criativa.
A cidade criativa segue a mesma lógica de busca de diferenciação a partir de suas singularidades, em um processo de dentro para fora. Mas a cidade envolve claramente outras dinâmicas, além da econômica.
GS: Sabendo que devemos preservar a singularidade e a diversidade cultural nas cidades, há características que definem se uma cidade é criativa?
AC: Em um estudo que desenvolvi com 17 outros colegas de 13 países foi possível definir que uma cidade criativa é uma na qual há uma abundância de inovações (econômicas, sociais, culturais – inovações entendidas como soluções para problemas e oportunidades), conexões (entre áreas da cidade, entre grupos sociais, entre público e privado, entre local e global…) e cultura (por seus valores culturais, por seu impacto econômico e por gerar um ambiente mais propício à criatividade). Uma cidade criativa está em permanente processo de transformação.
Tendo em vista que as cidades estão em constante processo de transformação, há um momento onde podemos dizer que uma cidade é criativa?
Uma cidade sempre pode ser mais criativa do que já o é. O que percebo pelas cidades que temos estudado e com as quais temos trabalhado é que esse processo muitas vezes é catalisado por um agente social qualquer – em alguns casos o governo (como no caso de Paulínia ou de Bogotá), em outros pelo setor privado (vide iniciativas mais pontuais, como a do Walter Mancini na Rua Avanhandava) ou ainda pela sociedade civil (a exemplo de Paraty). Para que essa fagulha tome corpo e contagie a cidade em um fogo duradouro, é preciso que os demais agentes (governo, empresas, sociedade civil) se unam a esse processo, dando-lhe oxigênio. Talvez os dois maiores desafios de uma cidade criativa sejam a) garantir que toda a cidade se beneficie de sua criatividade, não apenas bolsões dela; e b) que ela não só “esteja” criativa, como o “seja”.
GS: Qual a importância da criatividade para o turismo nas cidades?
AC: Quando eu morava em Londres, justamente na época em que a economia criativa eclodiu, em 1997/98, havia uma campanha publicitária de uma empresa de comunicação, que dizia “deixamos o mundo menor e seu mundo maior”. Hoje, as pessoas entram na Internet e têm acesso a uma miríade de possibilidades de destinos turísticos – dos mais tradicionais aos mais exóticos. O que faz com que o turista se interesse por uma ou outra é justamente a singularidade daquela cidade. Se pensarmos também no turista que vive nas nossas grandes cidades, a criatividade é o que mobiliza uma pessoa a sair de seu bairro ou região e ir a áreas da cidade às quais nunca teria ido. Essa mobilidade, essa conexão entre áreas, é fundamental para que o cidadão se engaje com sua cidade, para que a conheça e a defenda. A criatividade, portanto, atrai o turismo e é alimentada por ele.
GS: Quais as cidades que atualmente são modelos de criatividade? O Brasil tem cidades criativas?
AC: As grandes referências no mundo, citadas continuamente, são Barcelona, Londres, Nova Iorque e, em tempos mais recentes, Bogotá. Qual o fascínio desses espaços? Sua inovação, sua efervescência cultural, sua diversidade, sua capacidade de se transformar e de se conectar consigo e com o mundo. Há tantas outras, de diferentes escalas e em situações socioeconômicas variadas. O Brasil certamente tem várias cidades criativas, mas precisamos identificá-las, para aprender com elas e entender o que, em seu processo de transformação, pode inspirar outras cidades. É a isso que se destina o projeto Criaticidades.
GS: Qual a importância da Copa do Mundo de Futebol e das Olimpíadas nesse processo de transformação das cidades? Você acredita que o Brasil esteja se preparando de maneira criativa para esses eventos?
AC: Os grandes eventos podem oferecer uma oportunidade ímpar para catalisar processos de transformação nas cidades, se forem postos a serviço delas – e não o contrário. A meu ver ainda estamos muito distantes de perceber isso no Brasil. Todo o foco tem sido dado à infraestrutura, aos rios de dinheiro vertidos pelo BNDES para a construção de estádios, à realização dos jogos na cidade X ou Y. A cidade não acabará quando o projeto esportivo terminar. Discutir o legado e construir uma estratégia para que a cidade seja um espaço melhor é fundamental.
GS: Sabemos que você está sempre envolvida em grandes e importantes projetos, tais como o livro Creative City Perspectives, lançado neste ano em português, e também o Criaticidades, projeto que acaba de lançar. Conte-nos um pouco do que se tratam esses projetos.
AC: Entendo que nossas cidades mereçam ser consideradas como mananciais de soluções – que de fato são. Afinal, a cidade é formada por pessoas; se estas forem criativas e essa criatividade for posta em contato, se somar, se cruzar, a cidade também será criativa. E quão mais criativa a cidade for, mais as pessoas se sentirão estimuladas. “Cidades criativas”, porém, é um tema ainda mais emergente do que economia criativa, ao qual venho me dedicando há vários anos. Resolvi então cursar um Doutorado em Urbanismo na FAU/USP (com uma tese pioneira no Brasil em cidades criativas) e, em paralelo, sistematizar o que vários colegas no mundo já vinham discutindo. O livro “Cidades Criativas – Perspectivas”, que lancei em português recentemente, foi fruto de um trabalho voluntário de todos nós envolvidos – autores, agência REPENSE, Garimpo de Soluções como editora e, para sua publicação em português, unimos SEBRAE, Santander e SP Turis. Já que na teoria o conceito fazia sentido, resolvi ver até que ponto ele era viável na prática. Surgiu daí o projeto Criaticidades, que estimula o olhar das cidades sobre si mesmas, descobrindo seus potenciais e singularidades e como esse ativo tão precioso da criatividade pode gerar riquezas econômicas, culturais e sociais. Outros projetos deliciosos estão a caminho: o lançamento de novo livro digital sobre cidades criativas e grandes projetos, em março, no Museu do Futebol, junto com a SP Turis; um seminário internacional enorme com o SESI/SP, em abril; novo livro em maio e assim por diante. Tudo isso será divulgado no site www.criaticidades.com.br e na página da Garimpo de Soluções, no Facebook. Esperamos ter cada vez mais pessoas que se unam a nós nessa bandeira. Afinal, é da soma de diversidades e olhares que surge a criatividade.
*Ana Carla Fonseca Reis é coordenadora do curso Economia Criativa e Cidades Criativas pelo Cemec.
Fonte : Cemec